Page 9 - ALFABETIZAÇÃO DE CRIANÇAS E ADULTOS - NOVOS PARÂMETROS.indd
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materiais mais adequados para que ela possa efectuar sobre eles uma actividade mental de elaboração e
                  verificação de hipóteses que conduza à descoberta daquele princípio. A partir daí, o ensino das correspon-
                  dências grafema-fonema de base pode e deve fazer-se de modo muito mais directo. no entanto, este ensino,
                  embora necessário, é insuficiente. A prática da leitura vai permitir à criança prosseguir e completar o seu
                  processo de alfabetização por meio de processos de aprendizagem implícita, inconsciente, que são bem
                  mais decisivos do que qualquer estratégia consciente de resolução de problemas.
                      Pode afirmar-se portanto que uma das grandes contribuições da ciência cognitiva contemporânea é
                  a compreensão (ainda parcial) que hoje temos da maneira como na aprendizagem se articulam processos
                  conscientes e inconscientes. não tem mais sentido apresentar a aprendizagem da leitura como sendo uma
                  construção erguida por uma racionalidade consciente e curiosa, mesmo se a ciência cognitiva comprova
                  que racionalidade, consciência e curiosidade também intervêm no processo.
                      Por que é que o construtivismo psicogenético tem seduzido um grande número de universitários sul-
                  americanos? Uma das razões é a atitude romântica que consiste em querer tratar a criança globalmente (da
                  minha abordagem, já alguém disse que ela consiste em cortar a criança em fatias!) e como autor quase exclusivo
                  do seu desenvolvimento. outra razão, pelo menos tão influente, é a confusão entre o que, na pedagogia da
                  leitura, resulta de motivações científicas e de motivações políticas. Diz emilia ferreiro, num artigo recente,
                  que “a discussão académica, no caso do Brasil, logo adquire conotações políticas”. Afirma ela também que
                  o “estabelecimento de um vínculo tão estreito entre pronúncia (fala) e escrita é pleno de consequências
                  (políticas, ideológicas e pedagógicas)”. De facto, as implicações pedagógicas da Ciência Cognitiva da leitura
                  e do construtivismo psicogenético não são as mesmas. Provavelmente, as suas conseqüências sociais também
                  não são as mesmas. entre as conclusões a que chega a Cência Cognitiva da leitura (ou da literacia, termo
                  que prefiro ao de letramento) encontra-se a ideia de que a explicitação das relações entre a linguagem oral
                  e a linguagem escrita e em particular das correspondências grafema-fonema contribui para a autonomia
                  do alfabetizando. Autonomia neste caso quer dizer acesso tão rápido quanto possível ao auto-ensino e à
                  auto-aprendizagem e portanto menor dependência relativamente às insuficiências culturais e educativas
                  do meio escolar e familiar. em resumo, os princípios subjacentes ao método fónico não são de “direita”,
                  contrariamente ao que alguns pensam. estes princípios são defendidos desde 1998 pelo Comité Científico
                  do observatório nacional da leitura da frança, de que faço parte, e as propostas pedagógicas deste Comité
                  têm sido aceitas sem reservas pelos ministros que se têm sucedido, apesar da alternância esquerda-direita dos
                  governos. Recusando qualquer tutela política ou ideológica, a única afirmação que pode ser feita quanto a
                  essas propostas é que elas são claramente democráticas, uma vez que procuram viabilizar o acesso de todas
                  as crianças a um instrumento importantíssimo de emancipação social e cultural, sem qualquer discriminação.
                      A questão política e ideológica merece, para alguém que se considera publicamente um homem de ciência,
                  mais um comentário. tem havido a preocupação, por parte de alguns defensores do chamado relativismo
                  cultural, de integrar a capacidade mental de literacia numa visão política ou ideológica. esta preocupação
                  é perfeitamente legítima se a literacia é tratada enquanto fenómeno social. Mas a partir do momento em
                  que o discurso incide sobre a literacia enquanto capacidade mental, as preferências políticas e ideológicas
                  não devem influenciá-lo. sei que as questões de que trata a ciência são raramente questões sem qualquer
                  implicação política ou ideológica, e não sou ingénuo ao ponto de me convencer que a minha maneira, ou a



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