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As concepções que inspiram os actuais Parâmetros Curriculares nacionais relevam muito do chamado
                  construtivismo. o que é exactamente o construtivismo? É um postulado subjacente a certas teorias cientí-
                  ficas, tal como o nativismo e outros termos terminados em –ismo. Um postulado é algo necessário para se
                  elaborar uma teoria científica. só se torna contraproducente quando, perante a força das evidências que lhe
                  são contrárias, acaba em dogma. no caso do construtivismo, o postulado é que o ser humano se constrói.
                  o sentido da metáfora da construção aplicada à psicologia é que, de alguma maneira, nós construímos o
                  sistema cognitivo como construímos armários, aviões, catedrais, computadores: seleccionando materiais e
                  organizando os elementos num todo destinado a uma nova função. Construir é evidentemente estar activo,
                  mas isto não implica que, para todas as teorias que não são construtivistas, o indivíduo que se desenvolve
                  e aprende seja essencialmente passivo.
                      o postulado construtivista tem sido elaborado em filosofia de diversas maneiras: há o construtivismo
                  crítico, o radical, o relativista radical. Para além dessas diferenças, o que importa ter em conta é a ideia cen-
                  tral, expressa por Kant, de que o ser humano, em vez de extrair a ordem do mundo, impõe ordem na sua
                  experiência sensível do mundo, e, em vez de descobrir conhecimento, cria conhecimento. tendo nascido
                  equipado com uma estrutura racional, o ser humano constrói-se e atribui sentido ao mundo a partir da sua
                  percepção do espaço e do tempo e de certas categorias que permitem realizar operações lógicas (causa-efeito,
                  negação, necessidade, pluralidade). Aplicado à leitura por estudiosos da segunda metade do século XX, este
                  princípio implicaria que a compreensão de um texto não é uma habilidade de extracção da informação que
                  nele está contida, mas uma atribuição, uma construção de sentido. Infelizmente, nas discussões em torno
                  dessa questão, esquece-se muitas vezes que ela tem várias pontas por onde se lhe pegue e que cada ponta
                  tem a sua pertinência. se é verdade que um cinéfilo e um não-cinéfilo provavelmente não reagem da mesma
                  maneira à frase “o trem apitou três vezes”, também é verdade que se o cinéfilo reage de maneira diferente
                  é porque primeiro identificou cada palavra e a frase globalmente de maneira correcta, isto é, respeitando a
                  informação que ela contém.
                      Actualmente, no campo da psicologia do desenvolvimento cognitivo, há linhas de trabalho científico
                  que se realizam sob a inspiração de novas versões do construtivismo, como o o neuroconstrutivismo e
                  o co-construtivismo biocultural. o primeiro, em particular, tem estimulado importantes estudos longi-
                  tudinais de crianças com dificuldades na aprendizagem da leitura. Porém, não são essas concepções que
                  influenciam a filosofia do ensino da leitura no Brasil, mas sim o construtivismo psicogenético, tal como
                  este foi aplicado à linguagem escrita por emilia ferreiro e pelas suas principais colaboradoras. foi de
                  grande valia a contribuição desta autora ao chamar a atenção para a importância das representações mentais
                  que a criança tem da escrita antes da aprendizagem da leitura. no entanto, a sua visão da alfabetização
                  como um processo de resolução de problemas que exige elaborar e provar hipóteses e inferências está
                  hoje claramente refutada.
                      na realidade, o processo de aprendizagem da leitura e da escrita comporta uma complexa articulação
                  de processos conscientes e inconscientes. em primeiro lugar, os estudos experimentais mostram que, sem
                  estimulação apropriada, a criança (ou, em todo caso, a imensa maioria das crianças) é incapaz de desco-
                  brir por si só a maneira como o sistema alfabético representa a linguagem oral. A tomada de consciência
                  do princípio alfabético requer uma instrução adequada. faltando à criança a consciência dos fonemas, a
                  instrução directa do princípio alfabético é impossível. Assim, o alfabetizador tem de propor à criança os



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