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cionalmente ignorada, na maior parte das universidades brasileiras. estas entrincheiraram-se numa defesa
ideológica de concepções atualmente refutadas. o próprio fato de professores universitários se colocarem a
favor de um ‘modelo ideológico’ da leitura, vendo nesta apenas uma prática social a examinar de um ponto
de vista ideológico e não uma habilidade, é inconciliável com a abordagem científica”.
embora pouco difundidos, os conhecimentos científicos mais atualizados sobre aprendizagem e ensino
da leitura e escrita não são totalmente ignorados no Brasil. existem grupos disciplinares e interdisciplinares
em centros de psicologia da UsP e da UfMG e em centros de linguística na UnICAMP e na UfsC que
vêm desenvolvendo conhecimentos novos e aplicando aqueles já existentes à alfabetização.
o debate sobre o descompasso entre o que se propaga como científico e atualizado no Brasil e o que
se reconhece como tal no resto do mundo foi desencadeado pela apresentação e publicação do relatório
Educação Infantil – os novos caminhos, apresentado à Comissão de educação da Câmara dos Deputados em
15 de setembro de 2003 por um grupo de sete especialistas em alfabetização, quatro deles de outros países.
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o descompasso deriva de um erro inicial: a confusão entre alfabetização e usos sociais da língua, entre
ler e compreender, entre a natureza da atividade cognitiva envolvida na alfabetização e a natureza de seu
objeto (que é a língua). esse tipo de erro é conhecido na epistemologia como “deslocamento de concei-
tos” e é fruto de um erro de raciocínio lógico. Pequenos erros, grandes desastres. ou melhor: como dizia
Aristóteles, o menor desvio da verdade, no início, mais tarde se multiplica por mil.
esse erro inicial de definição afeta a compreensão sobre “a verdade da alfabetização”, sobre a essência
do que seja alfabetizar, e é agravado por dois fatores. De um lado, a visão unidisciplinar, oferecida sobretudo
por alguns linguistas que tentam explicar os fenômenos da aprendizagem da leitura unicamente a partir de
características de língua, ignorando as contribuições da pesquisa experimental. De outro, o abandono dos
critérios reconhecidos internacionalmente para validar conhecimentos científicos, em favor do que Morais e
Kolinsky chamam de discurso ideológico. Por exemplo, somente uma ignorância absoluta do que vai pelo
mundo ou a cega adesão a um discurso ideológico pode justificar afirmações como a de que “a psicogenética
da língua escrita constitui-se numa mudança paradigmática sobre o processo de aquisição da leitura e da
escrita”. A verdade histórica é que houve uma tentativa de explicar a aquisição da leitura e escrita a partir
de uma extensão das ideias de Piaget, mas essa tentativa não deu certo. em termos científicos, isso signi-
fica que surgiram explicações mais corretas para esses fenômenos. Isso não significa que os proponentes
dessas ideias sejam incapazes ou incompetentes. o mundo da ciência é um mundo de ousadia, de quebra
de fronteiras, de ensaio e erro. Algumas ideias dão certo, outras não. o que faz avançar a ciência experi-
mental não é apenas a ousadia ou o brilhantismo das ideias; é a fidelidade aos métodos e procedimentos,
para assegurar se as ideias funcionam ou não. As ideias da psicogenética não funcionaram como modelo
explicativo – há explicações melhores.
este livro pretende ajudar o leitor a compreender a natureza e as implicações de um debate científico,
e dele participar sem se deixar enganar por argumentos de autoridade ou de natureza ideológica. Convi-
damos o leitor a fazer, com sua própria cabeça, a sua própria leitura crítica. Afinal, aprendemos a ler para
compreender o que lemos.
1 este relatório pode ser obtido em sites como usp@futuro.com ou www.alfaebeto.com.br A tV Câmara também possui vídeos com algumas
das conferências feitas pelos membros estrangeiros do grupo que elaborou o Relatório.
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